quinta-feira, 29 de abril de 2010

...de viagem


"Um viajante carrega consigo muitos sonhos complexos. São imagens das quais ele não pode abdicar, caso contrário jamais se poria a caminho. Viaja-se não por escolha, mas por que o desejo do longínquo é urgente, e este desejar é o que deixa cicatrizes em nós; não é menos que doloroso precisar viver aquilo que nos empurra para outro lugar. Viajantes são seres desenfreados, cuja alma, para se realizar, precisa abandonar o que é conhecido e escapar do mundo domesticado. A errância ou, antes, o desejo dela, tortura um corpo ao torná-lo consciente da urgência de pôr-se a caminho; e, neste caso, o espaço à sua volta converte-se todo em possibilidade e exercício de uma longa procura. Quando tudo que lhe é dado experimentar encontra sentido apenas numa sucessão fugaz de instantes, o homo viator, ao lançar-se a uma espécie de confronto com o futuro, sabe da impermanência como condição provisória de si. Entretanto, pondo o indivíduo num estado livre, primitivo, os vestígios da errância desenham num corpo finíssima tatuagem -- a cobrí-lo em toda sua extensão. Assim é que todo homem em viagem aprende que é, verdadeiramente, fora de si, pois carrega consigo, inscrito no corpo, o desejo do lugar a que nunca irá pertencer e que, contudo, visita -- desejando tornar-se parte.
De modo trágico, a viagem expõe a fragilidade de uma vida construída em minúsculos hábitos. O corpo experimenta novos espaços, e dali em diante -- até o fim da viagem, ao voltar a casa -- viverá da angústia de não mais estar, e ainda não ter chegado. Quer misturar-se e tornar-se alguém dali. Deseja o cheiro que exala das janelas dos prédios; envolve-se na textura das ruas, quer conhecer o ruído das casas, suplica por mergulhar em algo novo, que lhe dê outra vida, outras minúsculas experiências. Um nômade quer relacionar-se com o diverso de si, indo em sua direção, acolhendo-o. Sendo de toda parte e de parte nenhuma, todo viajante está a caminho para esse outro. E, porque não é exatamente fácil doar-se ao estranho, entregando-lhe a própria vida, o aprendizado da errância é radical.
Desejar o diverso de si e do que o cerca, ansiar pelo longínquo, é viver em tensão permanente. Tensão que dilacera o presente e converte a vida em insatisfação, sem deixar encontrar saída ou situação em que ela, vida, seja bastante. Ao contrário, homem ou mulher, errantes, buscam uma tal intensidade que sabem, apesar do perigo, espera acolá, aonde só a viagem os conduz. A inquietude, fulcro de vida de um viandante, do passeador sem destino, é o que, afinal, atesta o terrível de sua existência: o mundo diante de si e que ele deve abandonar e retornar, retornar e abandonar -- sem o que o próximo pôr-se a caminho esvaziar-se-ia de todo sentido. Leio, numa epígrafe de texto de Walter Benjamin, que 'viajo para conhecer minha geografia'. Ora, esse é um modo de conhecimento que só se realiza quando alguém decide viver a parte do nada que há na própria vida, aventurando-se para além do que é estável, do que está petrificado ou paralisado. O prazer que poderia advir desta exploração não é senão prenúncio de uma destruição. Partir, então, corresponde a reconhecer que o cotidiano se esclerosou. A geografia de um indivíduo, isto é, os contornos de sua posição no mundo, dá-se a conhecer de modo paradoxal, depois que o viajante abandona a própria existência, renunciando a algo a que pertença. Os limites do que você é não se traçam a menos que vá embora, não apenas de um lugar, mas de si."

citação de: VELLOSO, Rita de Cássia O outro de si que retorna de viagem

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